segunda-feira, 16 de julho de 2012

Causalidade


Dias atrás enquanto olhava um dos inúmeros sites e grupos de debate que participo na internet, vi uma discussão a respeito de causalidade. A discussão em questão envolvia o argumento cosmológico de Kalam para provar a existência de uma causa para o universo (e depois provar que essa causa deve ser Deus), que pode ser colocado na forma de um simples silogismo:

P.1 - Tudo que veio a existir tem uma causa;
P.2 - O universo veio a existir;
C - Portanto, o universo tem uma causa.

 A seguir há mais alguns argumentos rápidos para demonstrar que essa causa é atemporal, perene e pessoal, predicados esses compatíveis com o Deus judaíco-cristão por exemplo. Meu objetivo aqui não é, entretanto , discutir o argumento de Kalam. O que eu gostaria é me atentar para uma das contra-argumentações que vi durante o debate, a saber, que não havia tempo antes do Big Bang, e portanto, nada fora do tempo poderia ter causado o Big Bang. A tréplica para esse argumento, já enunciada por William Lane Craig [Errata: Acredito que esteja engando em atribuir essa réplica a Craig, pois não consegui encontrar a referência onde ele teria dito isso. Agradeço ao Patrick Cesar pela indicação], é que causa e efeito podem ser eventos simultâneos. Bem, eu fiquei intrigado com essa afirmação, e decidi investigar isso a luz dos meus conhecimentos físicos.

Se de fato causa e efeito podem ser eventos simultâneos, as leis físicas deveriam me indicar isso de algum modo. Observando a trajetória de um corpo sobre o qual atua uma força, deveria ser possível verificar, em um período de tempo muito curto, a presença do efeito da força.

Sabemos, é claro, que a trajetória de um corpo sobre o qual não atua nenhuma força (ou que a resultante das forças seja nula) ou é o repouso ou o movimento retilíneo uniforme, de maneira que SE por exemplo há uma simultaniedade completa entre causa e efeito, eu deveria observar uma relação funcional diferente disso ao tomar pequenos deslocamentos de espaço. O que acontece então? Bem, em todas as situações de interesse que pude observar na mecânica newtoniana, a relação entre o espaço infinitesimal e o tempo é da forma de um movimento retilíneo uniforme ou um repouso. Tomemos por exemplo um corpo sob ação de uma força constante, cuja evolução temporal é dada por:

$$x=x_0+v_0t+\frac{1}{2}at^2,         (1)$$
cujo deslocamento infinitesimal de tempo será dado por:
$$dx=(v_0+at)dt.      (2)$$

Bem, a primeira vista, a Eq.(2) não se parece com um movimento retilíneo uniforme. Mas é claro, porque o instante de tempo ainda não foi especificado. Se especificarmos um tempo qualquer, por exemplo, $t=t_0$ a Eq.(2) torna-se:

$$dx(t_0)=(v_0+at_0)dt=v(t_0)dt,        (3)$$
onde $v\equiv v_0+at_0.$, que tem a mesma forma da função horária de um movimento retilíneo uniforme (tomado em intervalos de tempo muito curtos), a saber:
$$dx=vdt.       (4)$$

E no caso de um oscilador harmônico, por exemplo? Bem, se considerarmos um oscilador da forma:

$$x(t)=A\sin(\omega t),      (5)$$
teremos:
$$dx=\omega A \cos(\omega t)dt,     (6)$$
e especificando o tempo novamente, recuperamos novamente a Eq.(4), com a diferença que $v=\omega A cos(\omega t_0)$.

Mas que garantia tenho eu que esses exemplos triviais e simples podem ser generalizados para QUALQUER trajetória regida pela dinâmica newtoniana? Oras, sabemos que qualquer função suficientemente bem comportada pode ser escrita como:
$$f(t)=f(t_0)+f'(t_0) \Delta t+ \frac{f''(t_0)}{2!}\Delta t^2+... ,    (7)$$
em primeira ordem de $\Delta t$ então:
$$df(t)=f'(t_0) \Delta t,        (8)$$
que tem a mesma forma da Eq.(4). Novamente, o que isso significa do ponto de vista físico? Significa que durante um intervalo de tempo muito curto, o corpo comporta-se como se nele não atuasse nenhuma força, o que nos leva a concluir que causa e efeito não podem ser simultâneos.

Mas que garantias tenho eu que a trajetória vai se comportar suficientemente bem a ponto de poder ser escrita como uma expansão em série de Taylor? Simples: o fato da trajetória atender a uma equação diferencial, justamente a segunda Lei de Newton: $\vec{F}=m\frac{d^2\vec{r}}{dt^2}$. Note que a restrição unidimensional não provoca nenhuma perda de generalidade para a análise.

Assim, em algo que me pareceu surpreendente, na mecânica newtoniana está implícito que causa e efeito não podem ser fenômenos simultâneos e instantâneos, mas graduais. Ressalva poderia ser feita ao se imaginar a interação gravitacional por exemplo, que aparentemente não pede nenhum tempo para atuar. Bem, o fato é que a trajetória de um corpo sob ação da gravidade também pode ser escrito na forma da Eq.(7). O problema só ocorreria se imaginarmos uma mudança súbita na própria força que atua sobre o corpo, como por exemplo, se imaginarmos que o Sol subitamente desaparecesse, fazendo a Terra imediatamente sair pela tangente de sua órbita. Mas o que aconteceria com a Terra no exato instante em que a força parasse de atuar sobre ela? Não podemos responder essa pergunta, porque nesse instante temos uma descontinuidade na força, de maneira que não podemos aplicar a Segunda Lei de Newton e fazer essa análise. Imediatamente depois, entretanto, tudo segue normalmente: o deslocamento infinitesimal do corpo continua sendo da forma da Eq.(4), até porque agora realmente não está atuando força alguma sobre o corpo. Nesse caso, não podemos dizer se causa e efeito foram instantâneos ou não.

Mas estamos usando um formalismo arcaico, tanto na dinâmica quanto na cinemática quanto na gravitação! Deveríamos estar falando de relatividade! Oras, na Relatividade as coisas não se alteram muito. Ao invés da lei de Newton temos, em um sistema onde $c=1$,

$$\vec{F}=\frac{d}{dt}\left(\frac{m\dot{\vec{x}}}{\sqrt{1-\dot{\vec{x}}^2}}\right),                     (9)$$
onde o ponto indica uma derivada com respeito ao tempo. O caso trivial de ${\bf F}=0$ resulta, com obviamente, na mesma solução dada pela Eq.(4). O primeiro caso não trivial, a saber, ${\bf F}=k$, com $k$ constante, tem uma solução ligeiramente diferente. Como estamos primordialmente interessados na variação temporal do posição, tomemos apenas a solução da derivada primeira, com a constante $k$ englobando a massa:

$$\frac{dx}{dt}=\frac{kt+c_1}{\sqrt{1+(kt+c_1)^2}},           (10)$$
onde $c_1\equiv \frac{v_0}{\sqrt{1-v_0^2}}$. Novamente, se setarmos $t=t_0$ recuperamos a estrutura da Eq.(4).

Em casos mais complexos a análise torna-se mais difícil, porque a Eq.(9) é uma equação diferencial de segunda ordem não-linear, de maneira que poderia sim haver pontos de descontinuidade na derivada. Entretanto, a relatividade é uma teoria que não permite transporte instantâneo de informação, de maneira que é seguro assumir, nos moldes dela, que causa e efeito não podem ser instantâneos, pois haveria aí transmissão de informação supra-luminal. No clássico exemplo do Sol desaparecendo, levaria um tempo até que a informação atingisse a Terra e assim o efeito se processasse (embora que este seja o campo da Relatividade Geral).

Aparentemente então, causa e efeito simultâneos não parecem fazer sentido físico. Com exceção notável de uma situação que consigo me lembrar: a questão dos pares emaranhados na mecânica quântica. Por exemplo, considere duas partículas de spin 1/2 na configuração do singleto:

$$|00>=\frac{1}{\sqrt{2}}(\uparrow\downarrow-\downarrow\uparrow).$$
Essa é talvez a situação mais simples correspondente a um par emaranhado: não podemos dizer, individualmente, quais os estados separados das partículas que formam o spin total. Nessa situação, e apenas nessa, parece haver causa e efeito simultâneos. Por exemplo, uma medida de spin de uma das partículas que compõe o par imediatamente vai determinar o spin da outra partícula do par. A mecânica quântica não prevê nenhum tempo de transmissão de informação entre uma partícula e outra. Entretanto, o tipo de transmissão de informação que ocorre nesse processo é fundamentalmente aleatório, de maneira que a única possibilidade física que eu tenho conhecimento de uma causa simultânea a um efeito é ironicamente, um processo randômico. Poderíamos pensar que talvez houvesse um mecanismo desconhecido responsável por essa transmissão. Entretanto, o Teorema de Bell juntamente com o experimento de Alan Aspect garante que nenhuma teoria de variáveis ocultas pode reproduzir todos os resultados da mecânica quântica. Assim, não há mais informações, ao menos no framework da mecânica quântica a serem extraídas dessa situação.

Conclusão:
Concluímos então que:
1-Um delay entre uma causa e um efeito está implícito tanto na mecânica newtoniana como na Relatividade einsteniana.
2-Uma causa e um efeito instantâneos podem ser possíveis na mecânica quântica por meio de pares emaranhados, mas o processo é essencialmente randômico.

Não convém analisar aqui as consequências que isso poderia trazer ao argumento cosmológico de Kalam, até porque não era meu objetivo discutir esse argumento nesse post. Deixarei, entretanto, em aberto ao leitor interessado que busque argumentos (tanto contra como a favor) que escreva nos comentários de que maneira as minhas divagações lhe foram úteis.

Saudações do físico insano
Guilherme Tomishiyo.



Introdução

Olá e bem-vindos à Sandíces Físicas (sim, com acento pra ficar mais insano). Esse é um espaço que reservei a mim, como estudante de física, para divagar sobre assuntos referentes a física e matemática. Ao contrário dos trabalhos que normalmente faço na internet, as postagens desse blog terão caráter um pouco mais técnico, leia-se, não poderão ser entendidas sem um esforço mínimo da parte do leitor.

Entretanto, estou naturalmente disposto a explicar toda e qualquer dúvida de quem o acesse e esteja interessado na discussão, assim como estou aberto a críticas e sugestões.

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